Os Mitos de Cthulhu
- Rafael Gonzaga

- 4 de dez.
- 5 min de leitura
Como narrar o indescritível?
Como comportar em palavras aquilo que foge da compreensão humana? Howard Phillips Lovecraft (H. P. Lovecraft) fez essa façanha com exímia maestria em muitos dos seus contos e romances, abordando um horror cósmico que narra não somente a ínfima posição humana diante da infinitude do universo, mas também a pequenez dessa mesma mente em tentar catalogar em palavras, termos e situações aquilo que foge da compreensão humana.

Apesar de muitas polêmicas sobre o racismo em sua escrita - as quais não abordaremos hoje -, suas obras influenciaram as futuras gerações na criação de um medo, um terror, um horror do desconhecido que, como veremos na análise da HQ - Os Mitos de Cthulhu (ilustrados por Esteban Maroto):
“Em suas histórias, ele nos previne do perigo que existe quando alguém pesquisa ou se aproxima muito do desconhecido, porque pode atrair a atenção de forças malignas e ser aniquilado pelos seres extraordinários de sua própria imaginação. Porque ‘os mitos são entidades poderosas demais para serem derrotadas pelos humanos’ [...]. É muito fácil perder o controle quando nos deparamos com manifestações vivas do incompreensível, situações nas quais o risco da loucura se torna tangível e aterrador.” (Maroto, 2019)*
Mas se já é difícil conter em palavras o incompreensível, será que transformar isso em arte pode se tornar uma tarefa ainda mais árdua?
De antemão, gostaria de deixar bem claro que esse texto não abordará de forma profunda os contos apresentados na HQ que são: A Cidade sem Nome, O Cerimonial e, por fim, Os Mitos De Cthulhu. As narrativas são ilustradas aqui sendo baseadas nos contos de nomes similares de Lovecraft e, como leitor e fã do trabalho do autor, me recolho de qualquer posição que venha a dar quaisquer spoilers.
Mas de forma resumida em “A Cidade sem Nome” acompanhamos um protagonista que, em busca de seguir um chamado forte e para além da razão, procura por uma cidade deserta cercada por sussurros e nunca visitada por um homem vivo. É uma narrativa solitária que nos faz questionar até onde devemos ir por um “chamado”.

Já “O Cerimonial”, sem dúvidas, é uma daquelas narrativas que o terror e o sentimento de tensão e desespero são construídos lentamente, mas que quando explodem, quando irrompem, nos deixam vidrados na narrativa sem podermos respirar; temos um protagonista que parte para uma cidade/povoado antiga(o) em prol de realizar um ritual - o cerimonial - ancestral para aqueles que ali um dia habitaram. Nessas duas obras vemos menções a Abdul Alhazred, o árabe louco, e sua “criação” o famoso Necronomicon, os fundamentos para o conto final que funcionam para a melhor construção da narrativa. Acredito que não haja a necessidade de uma sinopse nesse último conto pois Cthulhu é um dos seres/deuses antigos mais famosos das obras do autor.

O que vocês precisam saber é que os contos escolhidos abordam em parte o universo lovecraftiano, mas sem de fato serem aqueles contos que servem para demarcar ou explicar as estruturas dessa cosmogonia - com exceção do último -, principalmente porque como a própria nota da edição nos remonta: “A mitologia lovecraftiana, apesar de complexa, foi construída aos poucos pelo autor. Não existem relatos diretos e sistematizados, mas a caracterização dos personagens deste panteão estão em descrições salpicadas em seus contos” (Schittine, 2019)*. As narrativas aqui apresentadas servem justamente como uma porta de entrada para as principais características de um universo sombrio, solitário (principalmente nos dois primeiros contos) e desestabilizador. Um dos meus pontos favoritos nas narrativas lovecraftianas é a incerteza final onde vemos as personagens se indagando se tudo foi real ou apenas um devaneio e, nessa HQ, os contos escolhidos trazem essa característica,além de serem profundamente bem ilustrados. E acho que aqui podemos ir para o que interessa nessa resenha/análise: As ilustrações de Esteban Maroto.
Concordo plenamente com aquele ditado que diz que “uma imagem vale mais que mil palavras”, contudo, existem situações em que a incerteza e a névoa de uma imaginação fértil são a escolha certa para fomentar um terror abismal e, por vezes, individual. Por isso tenho muito receio em ver obras visuais inspiradas nesse autor.

Lovecraft trabalha essa descrição do indescritível de forma magistral inspirando um horror que terá uma visualidade própria na mente de cada pessoa. Mesmo que ele se “esforce” em utilizar das palavras para criar uma imagem desses seres e lugares, sua intenção de fato é deixar lacunas que serão preenchidas pelo leitor. Ver uma HQ dessas obras não me causa expectativa pois sinto que no geral os artistas se esforçam muito em dar rosto e forma à uma névoa, mas Esteban fez aqui um trabalho excelente que - na humilde opinião de fã das obras - faz jus as obras de Lovecraft. As ilustrações dessa HQ são excepcionais! Ouso dizer que Esteban é um artista que consegue trabalhar muito bem com o indescritível. Ele não tentou dar forma, ele brincou com a densidade dessa névoa.

Nós temos uma HQ cuja técnica principal para a artes é a nanquim que por si só já exige esse trabalho entre contrastes, entre luz e sombras densas, e finalizando com hachuras que acentuam a beleza dos detalhes arquitetônicos, mas que ao mesmo tempo são bem utilizados para ocultar um realismo nos seres e criaturas apresentados: é uma névoa que hora se torna visível aos olhos e em outro momento se dissipa em linhas e machas escuras se fundindo à atmosfera daquele universo. A ausência de cor proporcionada pelo material só acentua a sobriedade e “sombriedade” das histórias. Eu tive uma surpresa agradável. Tudo está ali, as estruturas são claras e detalhadas, mas quando o horror começa as linhas se embolam entre si, quase como se essa distorção nada mais fosse que uma representação visual da mente das personagens sendo engolida pelo desespero.

Cada quadro, cada legenda, cada ilustração e até mesmo as páginas de respiro com citações, tudo foi muito bem construído artisticamente, servindo para recriar a sensação que temos ao ler um dos contos de Lovecraft. Como fã das obras eu recomendo sem dúvidas essa leitura e beleza gráfica. O prólogo de introdução e notas de edição trazem um respeito ímpar não só ao artista mas também ao escritor e precisamos de trabalhos assim, que demonstrem esse respeito as artes literárias e visuais. Esse trabalho traz consigo o melhor dessas obras, nos fazendo de fato voltar às principais reflexões de Lovecraft que é esse horror inimaginável, que nos desafia a reconhecer o quão pequenos e fracos podemos ser diante do universo e do desconhecido. Mas como bem nos lembra Esteban:
“Sem dúvida, o medo do desconhecido é intrínseco ao gênero humano. Mas, ao mesmo tempo, a luta para ‘compreender’ também está dentro da maioria de nós. Temos os genes da rebelião, mas - pelo menos na minha opinião - somos vistos não como um ‘pecado’, mas como uma libertação. Se é que os deuses existem, nós somos uma parte deles, e se desaparecermos, também morre - ou se transforma - uma parte infinitesimal deles. Posso parecer estúpido ou arrogante, mas eu não pedi a vida, como não gostaria de pedir a morte.” (Maroto, 2019)
Talvez eu tenha me empolgado um pouco - muito -, mas “Os Mitos de Cthulhu” ilustrados por Esteban Maroto (e publicados pela editora Pipoca e Nanquim) é uma daquelas obras que com certeza qualquer fã do universo lovecraftiano vai gostar. E não apenas isso, sem dúvida alguma é uma boa porta de entrada para a cosmogonia das obras do autor.
*Obs: A citação foi retirada de documento impresso não paginado.
Texto por: Rafael Gonzaga - @rafaelgonzaga.arts
Revisão: Amanda Murta - @amandamurta_





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