Onde Habita o Medo
- César Modesto

- 27 de nov.
- 3 min de leitura
Uma narrativa que rompeu fronteiras e estereótipos amazônicos
O quadrinho apresenta um cenário familiar, que facilmente se encaixa na memória de qualquer pessoa nortista: os designs de personagens lembram parentes e amigos e, principalmente, o modo de falar dá legitimidade ao sotaque regional. A narrativa textual, visual e afetiva, carrega muitos significados, especialmente para quem vivencia o cotidiano amazônico.
É uma história que nos faz refletir sobre as origens, mostra como o ceticismo e a falta de conexão com o passado podem provocar medo pelo desconhecido e, assim, afetar até a percepção de nosso real poder.
Kauê é um dos primeiros personagens apresentados nessa aventura e funciona como personagem guia, ou seja, ajuda os leitores a acompanhar a história. Ele é um menino um pouco antissocial e até ranzinza, mas que, inevitavelmente, foi movido pela curiosidade de estar numa cidade com mistérios. O personagem demonstra um desenvolvimento pessoal e sutil quando se une a um grupo com o mesmo propósito de compreender os segredos do lugar e, nesse caminho, integra-se ao grupo, até se adaptar com a amizade e união.

A turma, composta por crianças, é um clássico nas escolhas de personagens de várias mídias, mas continua sendo uma proposta interessante para narrativas de suspense. A fragilidade e a sensação de que os personagens ainda não atingiram a maturidade e mesmo assim enfrentam situações difíceis, causam aflição, vínculo e emoção nas cenas de perigo.
À medida que descobrem as verdades sobre a vila, suas ligações com o local também descortinam suas próprias histórias e manifestam a importância de entenderem seu lugar no mundo. Um fato é que as pessoas possuem medo de algo ou alguma coisa, mas... E se esse medo não tivesse uma forma definida?
O medo metafísico é tão terrível e assustador quanto o medo concreto.
O medo pelo desconhecido...
O medo de esquecer as origens, uma carência inexplicada, a sensação de deslocamento no mundo, a intuição de que falta algo. Imagine um apagamento que causa essa emoção, mas cujo diagnóstico é difícil de definir.

Existir sem pertencer e não poder buscar essas memórias, seja por falta de fontes, desinteresse, medo ou por memórias usurpadas e sobrepostas por outras narrativas, ditas como corretas, e que tratam com pouca importância as outras versões de nossas origens...
Um pesadelo sutil, mas que nessa história demonstra, de forma impressionante, uma metáfora para o que significa lidar com as próprias expressões das identidades amazônidas na contemporaneidade.
Essas crianças começaram pela curiosidade e senso de justiça, e descobriram a importância de manter viva a espiritualidade do povo, algo que não devia ter sido afastado ou ignorado e que é devidamente ilustrado e contado nessa HQ.
O roteiro e as cores criados por TAI - @ixe_tai - e arte de NIL - @nilbertojorge – nos presenteiam com uma arte sequencial narrada por artistas que compreendem a vivência indígena por perspectivas vivas e afetivas.
Ler esse quadrinho é um alívio diante da cansativa jornada de autorias brasileiras que desconhecem a realidade amazônica, mas escolhem sempre abordar esse tema por visões genéricas, rasas e prepotentes. Tanto os quadrinhos do Norte, quanto o Brasil inteiro, são enriquecidos por essa grande referência, que mostra a cultura amazônica de forma divertida, épica e dramática, sem se render a estereótipos ou desfechos clichês.

O quadrinho é genuinamente bem-feito, de modo que Tai foi premiada na categoria de Melhor Roteirista de 2024, pela 2ª edição do Prêmio Mapinguari, uma premiação que é exclusiva para autores do Norte, considerando a perceptível dificuldade que leitores brasileiros têm em buscar conhecer autores da Amazônia.
É merecido o reconhecimento nacional que a HQ obteve e, não por acaso, foi histórica ao conquistar três categorias do HQ MIX, o vulgo “Oscar dos quadrinhos brasileiros”. Onde Habita o Medo foi contemplada pelas seguintes indicações:
Novo Talento Roteirista: Tai;
Melhor Publicação Independente de Edição Única;
Melhor Publicação de Aventura/Terror/Fantasia.
Contudo, é um fenômeno atípico que Tai seja reconhecida agora como um “novo talento”. A artista já é um talento no Pará com uma trajetória extensa, mas talvez esse seja o primeiro quadrinho que escreveu nos padrões nacionais, e não na forma habitual de publicações nortistas, que sobrevivem de coletâneas e edições limitadas.
A adaptação contém uma narrativa mais robusta, um projeto gráfico com lombada quadrada, cores incríveis, capa fosca que evoca o mistério e profundidade temática. Sozinho, o quadrinho já nos interessa, mas o fato de ser uma obra que tem a presença dos autores fora dos seus estados de origem, para pessoalmente apresentar a publicação, faz o quadrinho conquistar a atenção das mídias, repercussão nacional e não seria nenhuma surpresa se ganhasse também o cenário internacional. Sinceramente, estaríamos bem representados.
Autor: César Modesto - @cesar_mod
Edição: Mandy Modesto - @mandy_modesto_
Revisão de Texto: Amanda Murta - @amandamurta_





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