top of page

ARLINDO: A GENTE TEM A GENTE, A GENTE NÃO TÁ ERRADO EM EXISTIR

Aviso: Altas doses de Sandy & Junior foram ouvidas durante a produção desta resenha.


ree


Quando eu era criança, queria ter o cabelo igualzinho ao da Sandy; passava horas na frente da TV assistindo aos DVDs do Calcinha Preta e da Banda Calypso, sonhando com as botas da Joelma, entre os CDs de Rouge e Br’oz. Na adolescência, também ouvia rock melódico, virei emo e tinha relações um pouco “difíceis de explicar” com meus amigos e amigas, coisas que eu só iria entender depois de adulta. Foi assim que Arlindo, a HQ de Luiza de Souza (@ilustralu) me encontrou: por mais ou menos 200 páginas, eu tive entre 12 e  15 anos de novo, a mesma idade de Arlindo e seus amigos, partilhei de seus conflitos e chorei com todos eles enquanto um sentimento de familiaridade muito grande me invadia.


Nascido da necessidade de “discutir o que ninguém discute”, Arlindo surge por volta de 2018, como reação de sua criadora a comentários homofóbicos ouvidos pelas ruas de sua cidade natal (Currais Novos - RN) e após os terríveis e catastróficos resultados das eleições desse ano. Ilustralu começou a postar as tirinhas de Arlindo no Twitter, no formato webcomic, com uma postagem por semana e rapidamente começou a chamar a atenção do público. Quem viveu por essa época lembra muito bem do sentimento de desolação forjado a partir de tanta desinformação e ódio contra pobres, negros, mulheres, a comunidade LGBTQIA+, etc. e do ponto de luz que uma obra de arte como Arlindo representou. 


Segundo a autora, ao ser entrevistada no programa de TV Provoca, Arlindo surge como uma tentativa de ser reconhecível, uma ferramenta através da qual as pessoas possam se enxergar e compreender que não estão sozinhas, que existe um lugar onde os anseios da comunidade LGBTQIA+ são discutidos. Falando enquanto pessoa que é membro dessa comunidade e que foi adolescente nos anos 2000, assim como Arlindo e seus amigos, atesto que consegui me enxergar e me comover muitíssimo com o quanto as coisas podiam ser diferentes se um material como esse existisse como referência nesse período (eu teria entendido uma coisa ou duas um pouco mais rápido hehehe). Entretanto, que bom que Arlindo existe agora, é um alívio que essa geração já tenha essa referência!


Ilustralu, na mesma entrevista, revela que nosso protagonista e a narrativa não são retratos apenas da sua experiência enquanto pessoa nordestina e mulher bissexual, mas sim uma amálgama de vivências e relatos de amigos, o que é muito bonito se pensamos que a narrativa surge da vontade de conectar, ser uma experiência acessível e coletiva. O projeto, inclusive, foi publicado como uma HQ a partir de financiamento coletivo em 2021, reforçando ainda mais o poder que uma comunidade pode ter na realização de projetos independentes e na mudança de paradigmas sociais. Inclusive, falando da narrativa, vamos a ela.


Da narrativa e forma: reconhecimento e expressão


Arlindo - vou chamá-lo de Lindo a partir de agora, posto que gosto demais do nosso protagonista - é esse garoto cheio de sonhos, bom filho, bom amigo e que gostaria muito de saber o que é viver a vida longe da cidade onde mora (a mesma da autora), das línguas afiadas dos vizinhos e das angústias acumuladas apenas por ser quem é. 


Somos apresentados, de forma muito fluida e suave, aos dilemas de Lindo, o que é feito com excelência pela autora, que consegue imprimir naquilo que é cotidiano, elementos-chave para a compreensão de seus personagens: é enquanto Arlindo ajuda a mãe na cozinha que compreendemos a proximidade e a complexidade da relação entre ambos, enquanto ambos escutam Ovelha Negra - Rita Lee.mp3 e temos os primeiros lampejos sobre como Lindo realmente se sente; enquanto caminha pela rua até a casa de sua avó Anja, ouvimos junto com nosso protagonista os comentários preconceituosos de sua vizinha; enquanto conversam sobre música no pátio da escola é que lemos a pergunta “qual música define o coração de vocês?” feita por Mari, denunciando a importância que a música tem nessa narrativa.

ree


Acompanhamos Arlindo, sua mãe, Lis, Mari e Pedro em uma jornada de aceitação de si próprios e de superação de desafios e preconceitos a partir da criação de uma comunidade que se enxerga, se apoia e pertence a si própria. Pertencimento, aliás, é um tema importante e muito presente na narrativa, uma vez que, ao refletirem e abraçarem o tema, os personagens não se enxergam mais sozinhos e insuficientes, mas como seres completos e membros de uma comunidade forte e que luta por si e pelos outros (às vezes literal e fisicamente, vide o confronto físico no qual os alunos se envolvem após comentários homofóbicos na escola). 


Os personagens refletem, de certa forma, um dilema comum a membros de comunidades marginalizadas: sou quebrado e errado, preciso compensar tudo isso de alguma forma. Assim, vemos os personagens, especialmente Lindo, sendo bons filhos, bons netos, bons irmãos, bons amigos e, apesar disso, se sentindo incapazes de gostar de si mesmos por completo. 


Daí a força presente em personagens como a Tia Amanda, um símbolo de que é possível quebrar o ciclo e construir uma vida sendo quem se é. Ao final da narrativa, vemos os personagens desenvolvendo amor-próprio e um senso de confiança muito forte em si mesmos e em sua comunidade, conseguindo se impor e abraçar todas as nuances que compõem o seu ser. Chorei muito (ao som de Você Sempre Será-Marjorie Estiano.mp3) e não estou brincando.


ree

A narrativa fluida e simples (e muito forte! Explosiva!) é muito bem mostrada através da arte da HQ, que também possui traços fluidos que parecem refletir, de certa forma, seus sentimentos e dilemas. Ilustralu, ao falar da produção do quadrinho na websérie Arlindo sou eu que documenta o processo criativo e afins, revela que as cores surgem com a intenção de destacar aquilo pelo qual Lindo tem carinho ou algum tipo de interesse. Ao longo da produção, a cor acabou se tornando, entretanto, uma forma mais simples e dinâmica de estabelecer a unidade e identidade da HQ. 


Enquanto leitora, acho que as cores ainda comunicam muito bem as emoções da narrativa e toda essa explosão de sentimentos e experiências retratados nessas páginas. As emoções e corações de Arlindo, Lis, Mari, Pedro e dos demais são vibrantes e muito fortes, o neon pulsante das páginas contrastado com as cores densas e mais sóbrias equilibra muito bem as nuances entre o que é dito e o que é não dito, entre o que grita e o que é silenciado. Uma das minhas páginas favoritas da HQ e que acredito que demonstra muito bem isso é a que retrata o momento em que Pedro e Lindo estão voltando para casa à noite.


ree

Todo o nervosismo do amor juvenil e a incerteza sobre o que dizer, o medo de ser reprimido com violência por expressar amor de forma não normativa podem ser sentidos pela diferença de tamanho entre os personagens e o restante do cenário, o azul do céu quase sufocante em contraste com o restante das cores. Até o balonamento da cena evoca a ideia de silêncio prolongado, com as caudas muito longas se entrelaçando e culminando na verbalização de um comentário corriqueiro, mas que transmite a vontade de estabelecer um contato. Me emocionei? Óbvio que sim. 


É impressionante a dinamicidade das páginas e o quanto Ilustralu aproveita os espaços e diferentes maneiras de nos contar alguma coisa. Na verdade, em alguns momentos, não é necessário que algo seja dito de forma explícita. Assim como os sentimentos do quadrinho escapam das margens e da lineart, informações essenciais sobre a narrativa e os personagens são pinceladas de forma inteligente e bem distribuída pelo cenário. Por exemplo, não é preciso que seja explicada a natureza carinhosa e protetora da relação de Arlindo e sua avó; a página inteira foi organizada de forma eloquente para comunicar essa informação:


ree

Em um dos momentos mais delicados da narrativa, um olhar mais atento percebe o peso e o simbolismo da foto de Arlindo e Pedro guardada dentro da Bíblia das Crianças, bem na página da Salve Rainha.


ree

Eu poderia falar dos detalhes, da delicadeza e atenção empregadas nessa obra por mais mil e uma noites, mas nada se compara ao impacto de ler, sentir por si só e se contagiar com todas as emoções que ela provoca (eu acho que me sinto um pouco mais neon depois que terminei de ler). Como Susan Sontag defendia, o contato com a obra de arte deve provocar e partir dos sentimentos e sensações que ela provoca e minha crítica não vai alcançar tal experiência.

Aliás, Lindo tem feito muito sucesso e conquistado muitas indicações e prêmios, além de ter uma animação já em produção. Segundo as informações do site da autora, o quadrinho já foi: 


  • Indicado ao Prêmio Jabuti 2022

  • Vencedor do CCXP Awards 2022 de Melhor Quadrinho Nacional

  • Vencedor dos prêmios HQMix 2022 de Melhor Publicação Juvenil, melhor Webquadrinho, novo Talento - Desenhista, novo Talento - Roteirista


e contando.


Arlindo ainda há de ir muito longe mostrando para o mundo esse Planeta de Cores que vive entre as páginas e entre as histórias de todo mundo que contribuíram para a criação dessa narrativa vibrante, atual e muito, muito necessária. Leiam Arlindo, sejam conquistados e se apaixonem também.


Links importantes:

Site da Ilustralu: https://www.ilustralu.com/


Resenha escrita por: Amanda Murta - @amandamurta_

 
 
 

Comentários


bottom of page