Guerreiras do K-pop
- Bell Modesto
- 1 de jul.
- 6 min de leitura
A destruição do impecável e criação do imperfeito

Um trio de garotas do k-pop caçadoras de demônios contra uma boy band demoníaca, um filme feito pelo mesmo estúdio de “Homem-Aranha Através do Aranhaverso”?. “Necessito!”, foi o que passou pela minha cabeça quando assisti ao trailer.
Fiquei bem ansiosa pra ver a animação, acredito que pelo fato de ser meio desligada às vezes, pensei que era uma série, mas na realidade era um filme. A mistura do 2D com 3D é maravilhosa, principalmente nos momentos engraçados, dava vontade de morder de tão boa que era. A expressão corporal dos personagens chamou minha atenção, assim como as coreografias, arrasaram muito.
O tigre azul é a coisa mais linda e fofa, e temos o pássaro sacana de chapéu, animais dignos de uma animação de respeito.
Agora as cores...que delícia de ver, esse filme é um deleite visual. Ele contrasta muito o vermelho e o magenta com o azul, é como se as cores lutassem entre si. O vermelho e magenta remetem à raiva, ao poder, à sedução e à sensação de perigo, essas cores vibrantes são manifestadas pelas chamas e fumaças de Gwi-Ma, o rei demônio. Enquanto o azul, apesar de ser uma cor fria, traz o aconchego, a segurança e a leveza, contudo, a tristeza e insegurança ainda estão lá, é contraditório, eu sei, mas essa cor é incorporada nas armas das Huntrix e na barreira contra os demônios, podendo representar essa dualidade de sentido na manutenção da conexão com as almas por meio de suas vozes, com o medo constante de perderem o que protegem e falharem.
Curiosamente, o tigre que acompanha o Jinu também é azul, assim como os portais por onde entra, talvez isso mostre a serenidade em meio ao caos. Além disso, a cor do cabelo da Rumi é roxo, a mistura entre o vermelho e o azul, não faz parte completamente de nenhum dos lados, ela está no meio deles e batalha para se encontrar nesse limbo solitário. O dourado também tem uma presença forte, relacionado com o sucesso, o brilho, a esperança e a felicidade, é o objetivo e propósito das caçadoras.

Como sou ARMY e kpoper, me alegrei vendo o K-pop sendo tema de uma animação de longa duração com todas as referências do gênero incluídas, foi muito legal ver elas, como o pôster do Twice no cenário. As Huntrix me lembram muito o K/DA, tanto pela música, quanto pela estética delas, já os Saja Boys eram semelhantes a diversos grupos, como Stray Kids, TXT, Enhypen e BTS. Agora, quando aparece o rapper Baby Saja, com cabelo azulado é impossível não associar ao SUGA, e nada tira da minha cabeça que o Abs ou Abby é o Bang Chan.
Foi interessante a escolha de idols femininas para lutarem contra demônios com o lema: “Vozes fortes. Suas faltas e medos nunca devem ser vistos”. Afinal, essa é a “vida” que os idols são obrigados a seguirem, principalmente quando o artista em questão é uma mulher. Inclusive, uma animação com protagonistas femininas fortes e caóticas com defeitos é muito necessária. Com a direção de Maggie Kang e Chris Appelhans, o fato de haver uma mulher responsável pelo rumo que a história levaria, foi extremamente crucial.
Quando vemos heroínas capazes de lutar e ao mesmo tempo agirem de forma boba, comerem o quanto querem, fazerem expressões de raiva e nojo, arrotar como alguém normal, sem ser aquela figura em um pedestal idealizada, que não comete erros e é sempre legal, traz humanidade e carisma para as meninas. O filme “Red” também fez isso, produzido por mulheres e para mulheres, já li muitas críticas sobre ele, mas é geralmente feita por um marmanjo que gosta de ver homens musculosos em tela, afinal, ele não fazia parte do público-alvo, então se sente no direito de falar que a obra foi chata e lacradora.

Sobre as garotas, a Mira é rebelde, dura e não deixa barato, mas tem medo de não pertencer à família que ela valoriza tanto e não merecer afeto. A Zoey é espontânea, criativa e disposta a resolver os problemas, mas tenta se encaixar, colocando as necessidades de todos em primeiro lugar, ao invés das suas, com medo de ser insuficiente ou exagerada. A Rumi é compreensiva, fiel e uma líder, mas guarda segredos, portanto, esconde os “defeitos”, forçando uma imagem de perfeição. As três com suas qualidades e monstros internos formaram um laço forte, porém instável.
Como é possível alcançar o Honmoon dourado com suas vozes, se as verdadeiras vozes não eram permitidas serem ouvidas? Esconder todas as marcas em prol de um futuro brilhante realmente nos faz mais fortes? O que a Celine, quem criou a Rumi, alimentou nela, foi a sensação de insegurança e solidão, ela queria ser sincera, mas não podia, ou pior, não conseguia, mentia para suas amigas e para si mesma.
Acumular e encobrir tudo fez com que ela se afogasse cada vez mais em um mar de desespero e desamparo, fazendo sua voz falhar, e ali, a definição de falha se tornava mais concreta.
O segredo da Rumi ser algo visível e coberto por mangas longas e golas altas é claramente associado à tentativa de camuflar as imperfeições, mas crescem conforme tentamos ignorá-las, nos corroendo cada vez mais. Então ela conhece o Jinu, um demônio que cometeu um erro fatal na vida passada, consequentemente refém das vozes de Gwi-Ma, lembrando-o da forma desprezível como agiu, fazendo-o desejar esquecer das memórias que tanto o torturavam. A Rumi diz a ele que demônios não sentem nada e são diferentes, mas o Jinu fala algo interessante, dor, sofrimento e vergonha é o que ele mais sente, é da natureza deles sentir, e é assim que são controlados pelo Gwi-Ma, enquanto as marcas são o lembrete da própria ruína.
Quando os dois começaram a externar suas dores, serem mais sinceros e a se permitirem baixar a guarda, aparecia o vislumbre da liberdade. Ao lado de quem compreende o sofrimento e solidão o fardo se torna menor e menos assustador. Com essa esperança, a voz da Rumi fortalece e as vozes persistentes de Jinu se calam, a música “Livre (Free)” foi um dos momentos mais importantes, por mostrar o recuo seguido do impulso da conexão entre os dois, eu fiquei hipnotizada.

Mesmo assim, Rumi seguia escondendo segredos de suas amigas, mas até onde isso iria? Estando tão perto de alcançar o Honmoon dourado, todo aquele brilho se apaga em segundos, e então ela se encontra ali, completamente fragilizada, vulnerável e despedaçada, não era o lugar, nem o momento para revelar o que se escondia. Com o choque, aquela conexão vulnerável entre as Huntrix acaba sendo quebrada. Ao procurar Celine, é lembrada de encobrir de novo suas imperfeições, repetindo a mesma coisa, talvez essa ideia também tenha sido marcada na vida de Celine enquanto era uma caçadora, a de ser forte e não quebrar. Mas no pior momento e na pior versão da Rumi, ela não era aceita nem acolhida, a sua “parte feia” era ignorada e recusada.
Ela não era querida por quem era, mas por quem deveria ser, no final, ela não tinha mais quem a enxergasse, tudo se partiu, assim como o Honmoon estava se desfazendo. Se o que ela deveria zelar e proteger era uma barreira feita por mentiras, ilusões e sofrimento, então que seja destruído. A partir daí, quando tudo já foi posto à mostra, chega de fingimento, ela encara o que lhe aguarda, é tudo ou nada. Era hora da criação de uma nova forma de proteção.
As feridas abertas de tanto tempo iniciam o processo de cicatriz ação, o que ficou marcado não sumiria, como Jinu disse, é um lembrete do fracasso. Mas negá-las é o mesmo que negar quem ela era, e fazer isso é ocultar uma parte dela, ainda que doloroso, faz parte da pessoa que ela havia se tornado. Não é sobre escondê-las e esquecer, e sim sobre superá-las, acolhê-las e não permitir que definam o todo simplesmente por uma imperfeição.

Esse momento final é incrível, temos “Seu Astro (Your Idol)” em que os Saja Boys atraem e seduzem as almas da multidão (eu também iria com essa galera), me lembrando muito “Pied Piper” do BTS, e “O Som Da Nossa Voz (What It Sounds Like)” em que as Huntrix finalmente encontram o que tanto buscaram, não é possível voltar, mas queriam consertar o que foi quebrado. Associei ao filme “Wish” por causa do poder das vozes, mas o impacto foi bem maior nesse filme com certeza.
Foi um uma história simples, mas bem feita e bem construída, mostrando que não precisou de algo mirabolante para ser marcante positivamente. Retrata a pressão em se encaixar em um modelo predefinido, o protagonismo feminino e a aceitação de si. Adorei que a animação é também musical, e ao assistir em inglês e dublado, amei as duas versões, mas acho que me emocionei mais em português, eu amei a dublagem e as músicas estão na minha cabeça.
Pra encerrar, já li comentários falando que querem muito um segundo filme, mas sinceramente, acho desnecessário, claro que o universo é incrível, porém fechar essa história em um único filme tem um charme a mais, é o que eu acho, uma continuação poderia fazer perder esse brilho. A gente já tá cercado de sequências, essa é minha opinião.
Recomendo muito para quem gosta de música e animação, poderia analisar diversas coisa, mais detalhadamente porque esse filme permite isso, espero que venham mais obras como essa no futuro.
Onde assistir: Netflix
Trailer do filme:
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