Catarse infantil contra a violência do mundo adulto
- Maiara Malato
- 22 de mai.
- 5 min de leitura
Resenha sobre o quadrinho “A guerra dos botões”.
Por: Maiara Malato - @_mai.drawing

Tudo começou com colhões murchos… na verdade, começou bem antes disso.
Nesse último mês, por causa do Circuito Norte em Quadrinhos que ocorreu no Centur e no Curro Velho, foi colocado alguns quadrinhos disponíveis para leitura na mesa e na prateleira de entrada da Biblioteca Carmem Souza (no Curro Velho) destacando vários quadrinhos para leitura. Inclusive, gostaria de destacar aqui o trabalho de curadoria das bibliotecárias de lá, tô voltando a ler mais livros, porque tem alguns exemplares que me chamaram a atenção enquanto eu, ocasionalmente, fico lá esperando a oficina começar.
Me deparo com alguns alguns quadrinhos conhecidos e outros que são verdadeiras relíquias, mas aqui me dedicarei a analisar o quadrinho “A Guerra dos Botões”, baseado no conto de Louis Pergaud (1882-1915). Com o roteiro de Philippe Thirault, desenhos de Aude Soleilhac, cor de Isabelle Merlet e traduzido por Luciano Vieira Machado e publicado pela editora Salamandra (parecia uma osga, e eu digo isso com todo respeito).

Okay, eu admito que peguei o quadrinho porque ele é lindo, a capa com seis garotos empunhando espadas de madeira e baladeiras, cercado pelo que aparentava ser o exército inimigo e ainda assim se mantinham firmes e confiantes, ou quase, num fundo roxo e laranja me chamou a atenção. A estilização dos personagens também capturou meu interesse, é simplificada, mas ao mesmo tempo deixa bem distinto quem são os personagens, e o controle das linhas é algo que particularmente me chama bastante atenção, e nesse caso, é impecável.
A história começa na vila Longevernes, dois irmãos apressando o passo para contar para o general que foram apedrejados pelos seus inimigos jurados, os Velrans, e xingados de várias coisas, inclusive de “Colhões murchos”, e é claro que Lebrac, o General, não iria deixar uma ofensa dessas passar em vão, e na calada da noite, como os nobres combatentes que são, correm até a escola dos Longevernes e escrevem no muro deles uma declaração de guerra.
No dia Santo, após a missa, o exército dos Longevernes, liderados pelo General Lebrac, vão até a pedreira encontrar os seus rivais, os Velrans, liderados por Azteca, e começa uma verdadeira batalha campal com moleque apanhando, batendo e tacando pedra. Uma verdadeira loucura.
Essa trama se segue com diversas batalhas ferozes travadas no campo de combate, entre as crianças, que em qualquer tarde livre depois das aulas se encontram para pelejar, numa luta justa de meninos contra meninos, crianças contra crianças.
E a noite, de crianças contra os pais.
A história se passa no interior da França, durante o período que o autor viveu, um vilarejo pobre em que as crianças iam pra escola após o período de trabalho no campo, nenhum dos lados vive no luxo, recrutas de ambos os exércitos são pobres e sem recursos, e dá pra entender a raiva e revolta dos pais quando precisam gastar o suado dinheiro que ganham, porque filhos despedaçaram as roupas, entendo o motivo, mas jamais justificaria a agressão.
Brincar é normal e saudável, faz parte da vida. Mas quando um bando de garoto se reúne com paus e pedras para uma batalha porque não tem mais nada pra fazer, e que poderiam sim estar brincando com qualquer outra coisa menos violenta, eu nem sei o que falar, mas embarquei na história enquanto imaginava como seria se essa história se passasse por aqui. Eu também não sei o que tinha pra fazer no interior da França em 1910, então talvez pegar uma baladeira pra tacar em vizinho chato fosse uma boa opção mesmo.
Os adultos que aparecem são retratados como negligentes, brutos e, com exceção do professor, nos poucos momentos que aparecem ou são citados, são em situação de violência contra as crianças.
Uma surra por um rasgo na roupa, um soco no olho por um botão perdido.
Já fui criança, eu sei que elas não são o poço de inocência que se pinta, a gente mentia, batia, malinava e podia ser bem cruel às vezes, mas também não nego que grande parte disso vem do ambiente que a gente cresce, e a medida que história avançava, passei a entender o porquê das batalhas, eles também precisavam descontar a raiva em alguém.
Pais que nem sabiam como e onde os filhos passavam a tarde, se sentiam no direito de punir os filhos por seja lá qual for o motivo, apenas viam que estragaram a roupa e imediatamente começavam o castigo sem nem perguntar o que aconteceu - “a violência é contagiosa”, um dos meninos comenta com um amigo após ver que um colega não consegue nem sentar direito, porque rasgou a roupa da missa e apanhou dos pais. Mas quem escapava do castigo, estava prontamente no fronte de batalha do dia seguinte.

Eu me pergunto o quanto desses pais se reflete nas crianças durante os momentos mais tenebrosos desse quadrinho, que é divertido na maior parte dele, mas quando o mundo das crianças e o dos adultos se chocam, é um balde de água fria da realidade, para ambos os lados dessa briga. Após uma derrota contra os Longevernes, Lebrac retorna para casa a noite, acompanhados por seus amigos e fieis soldados, a noite em tons de azul, roxo e com a luz alaranjada vinda da casa de Lebrac, é uma luz que não emana aconchego, é quase um alerta, um mau augúrio para o que está por vir.
O quadrinho não mostra a surra que ele levou, mas eu senti.
No geral o quadrinho é bem humorado, mostra brevemente assuntos nostálgicos pra mim, como primeiro amor de infância, jeitos ilícitos de conseguir dinheiro (minha família não esquece da vez que eu fiquei com 1 real da igreja), um esconderijo secreto que eu nunca tive, mas sempre sonhei em ter, porém decidi fazer a crítica mais voltada para o lado das crianças e dos adultos porque é um conflito que por mais que não apareça tanto entre os requadros, aparece entre quem eles são.
E eu super recomendo a leitura dele, vale relembrar que ele está disponível na biblioteca do Curro Velho pra quem quiser ler ele de graça. Sei que ele já teve algumas adaptações pro cinema, mas não cheguei a assistir, foi a primeira vez que ouvi falar desse quadrinho e que li qualquer coisa relacionada a ele e sobre o autor, então pra começar a praticar minha escrita e olhar crítico, resolvi escrever sobre ele.
Esse quadrinho me fez lembrar uma imagem que circulava na internet em que o chefe descontava a raiva no pai, o pai descontava a raiva na esposa, e a esposa descontava a raiva e a frustração nos filhos, e eventualmente essa criança ia descontar a raiva em alguém, nesse caso, em outros garotos, que também viviam da mesma realidade que a deles, e que até hoje ainda é a realidade de muitos.
O que me fascina no mundo dos quadrinhos, e de outras mídias no geral, é a capacidade de fazer a gente conhecer outras realidades, metáforas para a nossa própria história, e ver esses meninos brigando entre si, me lembrou do ensino médio, quando eu era bolsista numa escola particular não muito prestigiada, colegas de classe da minha sala e de outras unidades da mesma escola, saiam brincando entre si durante os jogos internos, quase como as rixas que ocorrem entre estudantes de escolas pública.
Brigas, xingamentos, e chegaram até a tacar pedra na outra unidade, o que desde aquela época eu achava completamente desnecessário, mas hoje eu entendo lá no fundo a gente também era só um bando de moleque à flor da pele, pobre e f***do, tentando sobreviver ao impacto da violência do mundo adulto se chocando contra a gente, em que ninguém pergunta como a gente tava se sentindo, apenas de qual lado a gente queria apanhar.
Autora da Resenha: Maiara Malato
Recomendação:
Leitura Gratuita - Visite a Biblioteca Carmem Souza no Curro Velho - Endereço: Rua Prof. Nelson Ribeiro, Nº 287 - Telégrafo.
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